1ª turma do STF comete lamentável equívoco em julgamento sobre a possibilidade da penhora do bem de família do fiador na locação comercial
Em junho de 2018, quando do julgamento do Recurso Extraordinário n°. 605.709, a 1ª Turma do STF, aplicando o método do distinguishing, criou verdadeira segregação entre o Locador de imóvel residencial e Locador de imóvel comercial.
Isto porque, ao permitir a penhora do bem de família do fiador para satisfação do crédito do Locador de imóvel residencial, excluindo o crédito do Locador de imóvel comercial desta mesma prerrogativa, deixou de perceber que o ordenamento jurídico não cria qualquer distinção entre estes sujeitos jurídicos.
A doutrina e a jurisprudência já assentaram o princípio de que a igualdade jurídica consiste em assegurar às pessoas de situações iguais os mesmos direitos, prerrogativas e vantagens, com as obrigações correspondentes, o que significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam, visando sempre o equilíbrio entre todos. Esta é a expressão máxima do art. 5º da Constituição Federal.
Ademais, o crédito do Locador pode ter diversas finalidades, independentemente da natureza da locação. Como exemplo, podemos ter uma situação em que o Locador de um imóvel residencial destina todo seu crédito para seu lazer, enquanto um Locador de imóvel comercial pode necessitar de seu crédito para sua própria moradia e vice-versa. As hipóteses são inúmeras e não há como pretender distinguir o crédito ou Locador para fins de possibilitar a penhora do bem de família do fiador do contrato.
Antes mesmo de demonstrar o lastimável equívoco cometido pela 1ª Turma do STF, vale fazer rápidas considerações sobre a possibilidade da penhora do bem de família do fiador de contrato de locação.
A Lei 8.009/90, em seu art. 3º, inciso VII, estabelece uma exceção para a regra geral da impenhorabilidade do bem de família, qual seja: “obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”. Em outras palavras, o bem de família é impenhorável, salvo quando este bem for do fiador de contrato de locação que se obrigou, como principal pagador e devedor solidário, pela satisfação do crédito do locador, em caso de inadimplemento por parte do locatário.
Esta matéria foi bastante debatida pelos Tribunais de Justiça dos Estados após a vigência da Lei 8.245/91, que acrescentou o referido inciso VII ao art. 3º da Lei 8.009/90, até que o assunto chegou aos tribunais superiores, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal.
Primeiramente o STF, em Sessão Plenária, ainda no ano de 2010, resolveu a questão com a edição do Tema 295/STF, em sede de Repercussão Geral, que, através do julgamento do recurso paradigma RE 612.360, firmou a seguinte tese:
“É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no art. 3°, VII, da Lei 8.009/1990 com o direito à moradia consagrado no art. 6° da Constituição Federal, com redação da EC 26/2000”.
Posteriormente, a Segunda Seção do STJ, já no ano de 2014, em julgamento pela sistemática dos Recursos Repetitivos, que originou o Tema 708/STJ, também declarou seu entendimento sobre a matéria, fixando a seguinte tese:
“É legítima a penhora de apontado bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, ante o que dispõe o art. 3º, inciso VII, da Lei n. 8.009/1990”.
Já no ano seguinte (2015), o STJ pacificou de vez a questão com a publicação da Súmula 549, que possui o seguinte enunciado:
“É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação”.
Vale ressaltar que todos os precedentes que originaram a súmula do STJ, tanto o REsp n°. 1.363.368/MS, que serviu de paradigma para o Tema 708/STJ, quanto os recursos n°s.: AgRg no AREsp 624.111/SP; REsp 1.363.368/MS; AgRg no AREsp 160.852/SP; AgRg no AREsp 31.070/SP; AgRg no Ag 1.181.586/PR; e AgRg no REsp 1.088.962/DF, tiveram, na origem, a possibilidade da penhora do bem de família do fiador em Locação Comercial.
Dito isto, vamos ao que interessa, que, afinal, é o tema deste artigo.
Como se pode perceber, o julgamento do RE 605.709 teve como questão originária a possibilidade da penhora do bem de família do fiador, que, in casu, afiançou Contrato de Locação de Imóvel Não Residencial (Comercial).
O julgamento foi da 1ª Turma do STF, composta pelos Ministros Luiz Fux, Marco Aurélio, Rosa Weber, Roberto Barroso e Dias Toffoli (relator). Este último, substituindo o Min. Alexandre de Moraes, para julgar processos a ele vinculados.
O resultado do julgamento foi por apertada maioria (3 x 2). Os Ministros Dias Toffoli e Luís Roberto Barroso, votaram no sentido de manter a higidez da tese firmada no julgamento do RE 612.360-RG (Tema 295/STF), sob o argumento de não ser cabível a distinção pretendida.
A Min. Rosa Weber votou de forma divergente, sendo acompanhada pelos Ministros Luiz Fux e Marco Aurélio.
Apesar do julgamento do RE 605.709 ter ocorrido em junho de 2018, como informado no início deste artigo, o inteiro teor do acórdão foi publicado (disponibilizado) apenas em fevereiro de 2019, possibilitando o estudo detalhado da decisão. O acórdão ficou assim ementado:
“EXTRAORDINÁRIO MANEJADO CONTRA ACÓRDÃO PUBLICADO EM 31.8.2005. INSUBMISSÃO À SISTEMÁTICA DA REPERCUSSÃO GERAL. PREMISSAS DISTINTAS DAS VERIFICADAS EM PRECEDENTES DESTA SUPREMA CORTE, QUE ABORDARAM GARANTIA FIDEJUSSÓRIA EM LOCAÇÃO RESIDENCIAL. CASO CONCRETO QUE ENVOLVE DÍVIDA DECORRENTE DE CONTRATO DE LOCAÇÃO DE IMÓVEL COMERCIAL. PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR. INCOMPATIBILIDADE COM O DIREITO À MORADIA E COM O PRINCÍPIO DA ISONOMIA. 1. A dignidade da pessoa humana e a proteção à família exigem que se ponham ao abrigo da constrição e da alienação forçada determinados bens. É o que ocorre com o bem de família do fiador, destinado à sua moradia, cujo sacrifício não pode ser exigido a pretexto de satisfazer o crédito de locador de imóvel comercial ou de estimular a livre iniciativa. Interpretação do art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/1990 não recepcionada pela EC nº 26/2000. 2. A restrição do direito à moradia do fiador em contrato de locação comercial tampouco se justifica à luz do princípio da isonomia. Eventual bem de família de propriedade do locatário não se sujeitará à constrição e alienação forçada, para o fim de satisfazer valores devidos ao locador. Não se vislumbra justificativa para que o devedor principal, afiançado, goze de situação mais benéfica do que a conferida ao fiador, sobretudo porque tal disparidade de tratamento, ao contrário do que se verifica na locação de imóvel residencial, não se presta à promoção do próprio direito à moradia. 3. Premissas fáticas distintivas impedem a submissão do caso concreto, que envolve contrato de locação comercial, às mesmas balizas que orientaram a decisão proferida, por esta Suprema Corte, ao exame do tema nº 295 da repercussão geral, restrita aquela à análise da constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador em contrato de locação residencial. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 605709, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 12/06/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-032 DIVULG 15-02-2019 PUBLIC 18-02- 2019)”
Pois bem! De logo, percebe-se que a 1ª Turma do STF afirmou que o RE 612.360- RG (paradigma do Tema 295/STF) teve como caso originário a fiança prestada em locação residencial.
Analisando o Voto divergente da Min. Rosa Weber, verifica-se a afirmação da Ministra de que o recurso extraordinário paradigmático n°. 612.360, enfocou a fiança prestada em locação residencial, conforme trecho reproduzido adiante:
“… Esse entendimento restou reafirmado ao julgamento do recurso extraordinário paradigmático nº 612.360, ocasião em que, enfrentado o tema nº 295 da repercussão geral, o Plenário deste Supremo Tribunal Federal assentou a seguinte tese:
“É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/1990 com o direito à moradia consagrado no art. 6º da Constituição Federal, com redação da EC 26/2000.”
A reafirmação da jurisprudência, no aludido apelo extremo paradigmático, teve por base precedentes que enfocaram a fiança prestada para viabilizar locação residencial, como bem ressaltou o Ministro Roberto Barroso, na presente assentada, em voto-vista proferido depois da manifestação do Ministro Dias Toffoli.
Essa circunstância distintiva impede, portanto, a submissão do caso concreto ora em julgamento, que envolve contrato de locação de imóvel comercial, às mesmas balizas que orientaram a decisão proferida por este Suprema Corte sob o regime da repercussão geral, restrita aquela, em suas razões de decidir, ao exame da constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador em contrato de locação residencial…”.
Nota-se, ainda, que a Min. Rosa Weber, induziu os operadores do direito a pensarem que tal assertiva teria sido ressaltada pelo Min. Roberto Barroso, em seu voto-vista.
Neste ponto, mostra-se flagrante o lamentável equívoco cometido pela Min. Rosa Weber.
A respeitável ministra cometeu, na verdade, dois desacertos.
Analisando o Voto-Vista do Min. Roberto Barroso, não há qualquer menção de que o RE 612.360-RG (paradigma do Tema 295/STF) tratou da fiança prestada em locação residencial.
Da mesma forma, ao consultar, na íntegra, os autos do processo originário que resultou no julgamento do RE 612.360-RG, torna-se patente que o caso tratou da fiança prestada em locação comercial, contrariando, inquestionavelmente, a premissa verificada no voto divergente da Min. Rosa Weber.
Compulsando os autos do proc. 0007021-13.2003.8.26.0005 (2ª Vara Cível do Foro São Miguel Paulista – TJSP) que precedeu o RE 612.360, é possível encontrar o próprio Contrato de Locação, raiz da controvérsia, onde se verifica, claramente, a finalidade mercantil da locação. A cláusula quinta do referido instrumento dispõe o seguinte: “O imóvel ora locado será utilizado para fins COMERCIAIS”.
Desta forma, não há como manter a aplicação do distinguishing entre os casos tratados no RE 605.709 e no paradigma do Tema 295/STF, tendo em vista que, conforme provado, as duas lides originárias trataram da possibilidade da penhora do bem de família de fiador de Contrato de Locação de Imóvel Comercial.
Fato é que, o lastimável acórdão, com equivocadas premissas fáticas, já está induzindo alguns julgadores pelo Brasil a utilizarem o entendimento isolado da 1ª Turma do STF (RE 605.709), conforme pode ser analisado nos seguintes processos: TJSC – AI 4013946-17.2018.8.24.0900; TJSP – AI 2192239-70.2018.8.26.000; TJPE – AI 0006433-11.2018.8.17.9000.
Vale lembrar que o precedente em debate, RE 605.709, não representa superação do entendimento do Plenário do STF no Tema 295. Até mesmo porque, em dezembro de 2018, a 2ª Turma do STF ao julgar o ARE 1.128.251, caso análogo (locação comercial), aplicou o referido Tema 295 para solução do caso, possibilitando a penhora do bem de família do fiador em locação comercial.
Contra o acórdão do RE 605.709, foram opostos Embargos de Divergência, que oportunizará ao Pleno do STF a correção do equivocado entendimento da 1ª Turma.
Vale deixar consignado um pouco da sabedoria de Eça de Queirós: “É sempre nobre, generoso e necessário, falar em erros cometidos, enquanto se podem remediar”.