A locação de imóvel comercial e o bem de família do fiador uma tentativa de mutação injustificada do tema 295/STF
Em março de 2019 publiquei um artigo, no Portal Jurídico Migalhas, abordando o equívoco cometido no voto divergente da Min. Rosa Weber, quando do julgamento do RE 605.709 pela 1º Turma do Supremo Tribunal Federal.
A pretexto de tornar impenhorável o bem de família do fiador em contrato de locação de imóvel comercial, impossibilitando a satisfação do crédito do locador, a respeitável Ministra, talvez induzida por alegações inverídicas do fiador em seu recurso, tomou por verdade que as premissas fáticas dos precedentes obrigatórios, tanto do RE 612.360 (que deu origem ao Tema 295/STF), quanto do RE 407.688 (citado no inteiro teor do RE 612.360) abordaram a locação de imóvel residencial.
Com base nessa premissa fática, comprovadamente equivocada, a Ministra aplicou o método do distinguishing para afastar a possibilidade da penhora do bem de família do fiador em contrato de locação de imóvel comercial, ocasionando grave risco de “calote” a centenas ou, talvez, milhares de locadores que, neste momento, estão com seus créditos sub judice experimentando o amargo sabor da insegurança jurídica.
Analisando o caso concreto (RE 605.709), que, até a publicação deste artigo, ainda se encontra em tramitação perante o Plenário do STF, verifica-se que a premissa fática fundamental deste caso (possibilidade de penhora do bem de família do fiador de contrato de locação de imóvel comercial) é idêntica a dos precedentes que deram origem ao Tema 295/STF, ao Tema 708/STJ e à Súmula 549/STJ. Portanto, não há distinção entre o caso concreto e os precedentes obrigatórios.
O Código de Processo Civil atua energicamente nestas hipóteses de caracterização de desigualdades em casos semelhantes, ao dispor que, deixando de aplicar precedente obrigatório, indicado pelas partes, o julgador deve explicar porque o entende inadequado ao caso que está julgando, demonstrando a distinção dos casos, mostrando que a hipótese fática em julgamento difere daquela que gerou o precedente (art. 489, § 1º, VI, do CPC). Medida legal, esta, que não foi atendida pelo órgão julgador na apreciação do RE 605.709.
Em nome da segurança jurídica e da isonomia de tratamentos, sendo respeitado, com o rigor imposto pelo próprio ordenamento jurídico, o referido dispositivo legal (art. 489, § 1º, VI do CPC), verifica-se facilmente a “reprovação” do provimento judicial exarado no RE 605.709, porque, como a análise detida evidencia, reporta-se ou simplesmente transcreve ementas de julgados, à guisa de observações detalhadas sobre as premissas fáticas dos referidos precedentes obrigatórios, sem justificativa plausível sobre a flagrante discriminação gerada entre os locadores de imóveis urbanos referente à satisfação de seus créditos.
A Ministra relatora do voto divergente, na verdade, não se desincumbiu de demonstrar a existência da suposta distinção fática em relação aos precedentes obrigatórios, mormente em relação ao leading case do Tema 295/STF, que permitisse a aplicação da metodologia do distinguishing.
Neste aspecto, nos afiliando à doutrina de Ravi Peixoto, é possível verificar a aplicação da figura processual denominada de inconsistent distinguishing (distinção inconsistente), que nada mais é que um equívoco do órgão julgador na utilização do método do distinguishing. Para o citado doutrinador:
“Quando ocorre a distinção inconsistente, tem-se uma deturpação da técnica da distinção, mediante um discurso da Corte de que há fatos relevantes que sustentam a criação de uma nova norma judicial, mesmo quando eles inexistem. Ou seja, há um discurso de que há distinção, mas ele é injustificado”.¹
Pior! Com a aplicação do inconsistent distinguishing, é possível observar verdadeiro aviltamento dos princípios da igualdade, da separação de poderes, da segurança jurídica, e da proteção da confiança no Judiciário.
Explico em síntese.
A doutrina e a jurisprudência já assentaram o princípio de que a igualdade jurídica consiste em assegurar às pessoas de situações iguais os mesmos direitos, prerrogativas e vantagens, com as obrigações correspondentes, o que significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam, visando sempre o equilíbrio entre todos. Esta é a expressão máxima do art. 5º da CF.
De acordo com o Min. Alexandre de Moraes, o princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos:
“De um lado, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se encontram em situações idênticas. A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas”.²
Ao aplicar o inconsistent distinguishing entre a locação residencial e a locação comercial para fins da possibilidade da penhora do bem de família do fiador, o precedente em estudo (RE 605.709) deixou de analisar ponto de extrema relevância constitucional no que diz respeito à igualdade material, na própria lei, entre os locadores de imóveis urbanos (residenciais ou comerciais). Na verdade, de maneira injustificada, criou duas categorias nunca antes vistas no ordenamento jurídico: locador de imóvel urbano residencial e locador de imóvel urbano comercial.
Neste contexto, é certo que todos os locadores de imóveis urbanos, sejam estes residenciais ou comerciais, encontram-se no mesmo patamar de direitos e possuem as mesmas obrigações perante o ordenamento jurídico, mormente diante da Lei do Inquilinato. Daí, surge o preceito fundamental de que tratar os iguais de forma desigual revela verdadeiro ato de discriminação e preconceito, condutas estas, bravamente combatidas pela Constituição Federal.
O Min. Alexandre de Moraes ensina que o princípio da igualdade, em outro plano:
“Opera na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social. O intérprete não poderá aplicar as leis e atos normativos aos casos concretos de forma a criar ou aumentar desigualdades arbitrárias. Além disso, sempre em respeito ao princípio da igualdade, a legislação processual deverá estabelecer mecanismos de uniformização de jurisprudência a todos os tribunais”.³
Deste modo, resta evidente a discriminação cometida entre casos idênticos, contrariando a igualdade das partes perante a lei. Ou seja, a locação de imóvel comercial no caso do RE 605.709 foi tratada de forma distinta e discriminatória com relação à locação de imóvel comercial dos precedentes RE 612.360 (Tema 295/STF), RE 407.688, dentre outros, apesar de serem casos idênticos perante a lei.
No caso concreto (RE 605.709), o crédito do locador proveniente de contrato de locação de imóvel comercial está prestes a sofrer um “calote” definitivo chancelado pelo Judiciário, enquanto nos casos paradigmáticos (precedentes obrigatórios) os créditos dos locadores, que também tiveram origem em contratos de locação de imóveis comerciais, foram garantidos através das respectivas penhoras dos bens de família dos fiadores, posto que nesses precedentes o Judiciário manteve a higidez do inc. VII, do art. 3º, da Lei do Bem de Família, declarando sua constitucionalidade.
Analisando o princípio da separação de poderes, temos que, de modo geral, a Constituição proíbe que o Poder Judiciário interfira nas leis criadas pelo Poder Legislativo, podendo, no entanto, conferir-lhes a interpretação e aplicação adequada para os casos concretos sob julgamento. Não é permitido, portanto, que o Judiciário aplique à determinada lei interpretação divergente de sua essência atribuída pelo Legislativo, sob pena de adotar função que não lhe é própria, contrariando, assim, expresso dispositivo constitucional consagrado no art. 2º da CF.
Neste ponto, verifica-se, com todas as evidências, que a 1ª Turma do STF, ao julgar o RE 605.709, criou uma norma própria, legislando positivamente e transpondo a atividade legiferante própria do Poder Legislativo.
Nesta circunstância, é certo que o próprio STF, através de seu órgão Pleno, declarou a constitucionalidade do inc. VII, do art. 3º, da Lei do Bem de Família através do Tema 295/STF. Assim, não caberia a um órgão isolado do STF modificar o dispositivo, restringindo seu alcance através da atividade tipicamente legislativa.
Apenas para ilustrar a excêntrica função legislativa ensaiada por decisão da 1ª Turma do STF, seria possível expor que o referido órgão, além de restringir injustificadamente os direitos de uma considerável parcela de locadores de imóveis urbanos, teria elaborado um “novo” texto legislativo, dando a seguinte “nova” redação ao inc. VII, do art. 3º, da Lei do Bem de Família:
“Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: […] VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação” “de imóvel residencial”.
De fato! Por este ângulo, aparenta-nos que o referido órgão julgador, integrante da curadoria suprema da Constituição Federal, na verdade, contrariou a própria Constituição e seus princípios fundamentais da isonomia (art. 5º da CF) e da separação dos poderes (art. 2º da CF), ao discriminar injustificadamente os locadores de imóveis urbanos e ao exercer função legislativa que não lhe compete.
O § 4º, do art. 927, do CPC estabelece que a modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
Em perfeita harmonia, o art. 24 da LINDB dispõe que a revisão judicial quanto à validade de atos e contratos cuja produção já se houver completado deverá levar em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de jurisprudência, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.
Da forma como foi deliberado o caso concreto, não se pode defender que houve subordinação aos citados preceitos legais. Com razão, como em um passe de mágica, o crédito do locador foi completamente esvaziado por não mais contar com a robusta garantia da fiança e a consequente penhorabilidade do patrimônio do garante, pondo em xeque a segurança jurídica que lastreou a formalização do contrato de locação que, por sinal, concretizou-se como um ato jurídico perfeito (art. 6º da LINDB). Da mesma forma, a decisão impôs aos locadores e cidadãos em geral uma verdadeira descrença sobre os efeitos jurídicos previstos na lei no momento em que seus contratos de locação foram praticados, afrontando, assim, o princípio da proteção da confiança. Não menos importante, o acórdão analisado cometeu verdadeiro desacato à isonomia, visto que para casos idênticos foram adotadas medidas distintas.
Fato é que, após publicação do infortunado acórdão proveniente do inconsistent distinguishing, o judiciário está sendo abarrotado de recursos que passaram a revisitar esta matéria, causando agitação no mercado inquilinário.
Em sede de Superior Tribunal de Justiça, já são dezenas de recursos tratando desta matéria. No entanto, em perfeita observância à mens legis da legislação inquilinária, novamente, o STJ está pacificando a questão independentemente da natureza do contrato de locação (comercial ou residencial). Os eminentes ministros, tanto da 3ª Turma, quanto da 4ª Turma, estão mantendo a higidez do Tema 295/STF, do Tema 708/STJ e da Súmula 549/STJ, preservando a satisfação do crédito do locador de imóvel comercial com a penhora do bem de família do fiador.
Já no âmbito do Supremo Tribunal Federal a questão ainda é tormentosa, posto que, ora se aplica, nas fianças decorrentes de locação de imóvel comercial, o Tema 295/STF, ora não se aplica.
Neste contexto, perante a Suprema Corte, é possível observar que a equivocada premissa fática de que os precedentes obrigatórios trataram da locação de imóvel residencial vem ganhando força de forma injustificada e despida de qualquer fundamentação adequada.
Alguns Ministros do STF, através de decisões monocráticas, estão afastando a penhorabilidade do único imóvel residencial dos fiadores apenas em contrato de locação de imóvel comercial, acarretando a frustração dos créditos dos locadores e favorecendo, de forma injustificável, a insegurança jurídica, com a única fundamentação sustentada pelo inconsistent distinguishing originado no RE 605.709, que tomou por base argumento fático equivocado.
Neste cenário de inverídicas premissas fáticas que originou o entendimento proveniente do RE 605.709, parecem ser válidas as palavras do político alemão Joseph Goebbels: “Uma mentira contada mil vezes, torna-se uma verdade”.
Em outro caso mais recente, o ARE 1.260.147, a Ministra Relatora, Cármen Lúcia, através de decisão monocrática, deu provimento ao agravo e ao recurso extraordinário de um fiador para afastar a penhora de seu bem de família, frustrando o crédito locatício de um Shopping Center (locador). Esta decisão foi publicada em maio de 2020. A única fundamentação desta decisão foi o voto da Ministra Rosa Weber nos autos do RE 605.709.
Contra referida decisão, o locador interpôs agravo regimental, sendo-lhe negado provimento. O núcleo do voto da Ministra Cármen Lúcia, que foi acompanhado pelos Ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Edson Fachin, da 2ª Turma, foi exatamente o inconsistent distinguishing. Adiante, reprodução do cerne da fundamentação do voto da ministra relatora:
“1. Razão jurídica não assiste à agravante. 2. Cumpre anotar que o Tema 295 da repercussão não se aplica à espécie vertente. Neste processo discute-se a penhora de bem de família por fiança em caso de contrato de locação de imóvel comercial. Naquele paradigma, a constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador em contrato de locação residencial. 3.Como assentado na decisão agravada, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 605.709, Redatora para o acórdão a Ministra Rosa Weber, a Primeira Turma, por maioria, entendeu não ser penhorável o bem de família do fiador no caso de contrato de locação de imóvel comercial:”
Deste acórdão, o Shopping Center opôs embargos de divergência, tendo em vista que, apesar do entendimento lançado pela 1ª Turma no RE 605.709, em momento posterior, o mesmo órgão, em outro julgamento, manteve a higidez da penhora com a seguinte ementa do julgado:
“DIREITO CIVIL. AGRAVO INTERNO EM EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PENHORA. BEM DE FAMÍLIA. GARANTIA COMERCIAL. POSSIBILIDADE. PRECEDENTE EM REPERCUSSÃO GERAL. 1. O Supremo Tribunal Federal entende que o art. 3º, VII, da Lei nº 8.099/1990, ao tratar da garantia qualificada, não fez qualquer diferenciação quanto à natureza do contrato de locação, dessa forma independe se a garantia é residencial ou comercial (RE 612.360-RG, Relª. Minª. Ellen Gracie). 2. Inaplicável o art. 85, § 11, do CPC/2015, uma vez que não houve prévia fixação de honorários advocatícios de sucumbência. 3. Agravo interno a que se nega provimento. (RE 1240968 ED-AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 27/03/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-083 DIVULG 03- 04-2020 PUBLIC 06-04-2020)”
Vale ressaltar que o entendimento lançado pelo Ministro Relator do caso em destaque, Roberto Barroso, foi acompanhado por unanimidade pelos demais integrantes da 1ª Turma do STF, os Ministros, Marco Aurélio, Luiz Fux, Alexandre de Moraes e, inclusive, a Ministra Rosa Weber.
No entanto, apesar de demonstrados os requisitos legais para admissão dos embargos de divergência, posto patente dissenso jurisprudencial entre a 1ª e a 2ª Turma do STF, a Ministra Cármen Lúcia inadmitiu-os sob o argumento de que “o acórdão embargado harmoniza-se com a jurisprudência deste Supremo Tribunal firmada por ambas as Turmas no sentido de “não ser penhorável o bem de família do fiador no caso de contrato de locação de imóvel comercial””.
Para sustentar seu voto, foram utilizados acórdãos provenientes da própria 2ª Turma, além do próprio RE 605.709 da 1ª Turma, desconsiderando, por completo, os arestos provenientes da 1ª Turma após o julgamento do fatídico RE 605.709, tais como:
“DIREITO CIVIL. AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PENHORA. BEM DE FAMÍLIA. GARANTIA COMERCIAL. POSSIBILIDADE. PRECEDENTE EM REPERCUSSÃO GERAL. 1. O Supremo Tribunal Federal decidiu que o art. 3º, VII, da Lei nº 8.099/1990, ao tratar da garantia qualificada, não fez qualquer diferenciação quanto à natureza do contrato de locação, dessa forma independe se a garantia é residencial ou comercial (RE 612.360-RG, Relª. Minª. Ellen Gracie). 2. Nos termos do art. 85, § 11, do CPC/2015, fica majorado em 25% o valor da verba honorária fixada anteriormente, observados os limites legais do art. 85, §§ 2º e 3º, do CPC/2015. 3. Agravo interno a que se nega provimento, com aplicação da multa prevista no art. 1.021, § 4º, do CPC/2015. (RE 1274269 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 28/09/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-241 DIVULG 01- 10-2020 PUBLIC 02-10-2020)”
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO. ALEGAÇÃO DE OMISSÃO NO DECISUM EMBARGADO. DIREITO CIVIL. CONTRATO DE FIANÇA. LOCAÇÃO COMERCIAL. PENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA. CAUSA DE PEDIR FUNDAMENTADA NA USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INCORRÊNCIA. ACÓRDÃO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADO, QUE APONTOU A AUSÊNCIA DE MÁ APLICAÇÃO DO TEMA 295 DA REPERCUSSÃO GERAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO DESPROVIDOS. 1. Os embargos de declaração voltam-se à correção de eventuais equívocos de julgamento, que produzam, no acórdão recorrido, ambiguidade, obscuridade, contradição ou omissão, a impedir a exata compreensão do que foi decidido, a teor do artigo 1.022 do CPC. Incabíveis, por conseguinte, para mera obtenção de efeitos infringentes quanto à matéria decidida, objeto de irresignação do embargante. 2. A jurisprudência vinculante do Supremo Tribunal Federal, fixada no julgamento do Recurso Extraordinário 612.360 (Tema 295 da repercussão geral), assentou a validade da penhora de bem de família realizada em imóvel do fiador de contrato de locação de imóvel. 3. O entendimento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que o art. 3º, VII, da Lei 8.099/1990, ao tratar da garantia qualificada, não fez qualquer diferenciação quanto à natureza do contrato de locação, dessa forma independe se a garantia é residencial ou comercial. Precedente: RE 1.240.968-ED-AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe 6/4/2020. 4. In casu, o acórdão recorrido apontou claramente a razão do não cabimento da reclamação, a saber, a ausência de má aplicação do Tema 295 da Repercussão Geral pela decisão reclamada. Destarte, não há qualquer contradição, tampouco obscuridade, omissão ou erro material na decisão embargada. 5. Embargos de declaração desprovidos. (Rcl 38822 AgR-ED, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 24/08/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-222 DIVULG 04-09-2020 PUBLIC 08-09-2020)”
Diante da decisão de inadmissibilidade dos embargos de divergência, foram opostos embargos de declaração para que fossem supridas as omissões pertinentes aos arestos provenientes da 1ª Turma sobre a possibilidade de penhora do bem de família do fiador em locação de imóvel comercial.
Vale destacar que, neste momento processual, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, atravessou petição requerendo sua intervenção como amicus curiae, tendo em vista a repercussão geral do caso em análise.
Pois bem!
Além de indeferir o pedido da Confederação Nacional do Comércio, a Ministra Cármen Lúcia ainda converteu os embargos de declaração em agravo regimental, incluindo-o, de imediato, em pauta de julgamento virtual pelo Plenário do STF e proferindo voto pela negativa de provimento do referido recurso do locador.
Com esta conduta, a respeitável Ministra criou bloqueio intransponível de acesso à ampla defesa e ao contraditório do locador, além de inviabilizar o devido processo legal, impedindo a participação de pessoas naturais ou jurídicas e órgãos ou entidades especializadas na matéria, por meio de intervenções na qualidade de amicus curiae e os necessários debates sobre a questão controvertida, tendo em vista a relevância do assunto, a especificidade do tema objeto da demanda e a repercussão social e econômica.
Isto porque, o Regimento Interno do STF não permite amplos debates e sustentações orais em julgamentos de agravos, o que não ocorre, por exemplo, nos julgamentos dos embargos de divergência.
Oxigenando todo esse rebuliço e alimentando a divergência de entendimentos dos eminentes Ministros do STF, logo após ser lançado o voto da Ministra Cármen Lúcia, o Ministro Dias Toffoli, pediu vênia para discordar do entendimento da relatora, reconhecendo que a questão não é pacificada no âmbito do Supremo Tribuna Federal e merece exame aprofundado pelo Plenário da Casa, a fim de decidir a questão de forma definitiva.
O seu voto foi favorável ao provimento do agravo regimental do Shopping Center para que sejam admitidos os embargos de divergência, oportunizando, desta forma, o amplo debate e a participação dos órgãos e entidades interessadas no deslinde da questão controvertida, com as necessárias sustentações orais.
Da mesma forma, o Ministro, realçando a importância da matéria, propôs o reconhecimento da Repercussão Geral da questão referente a penhorabilidade do bem de família de fiador em contrato de locação de imóvel comercial, propiciando, deste modo, a modulação dos efeitos de eventual acórdão proveniente do Plenário do STF que acarrete a mutação do Tema 295/STF, restringindo sua aplicação apenas para os casos de locação de imóveis residências. Isto em observância à segurança jurídica e à proteção da confiança.
Neste mesmo sentido, o Código de Processo Civil estabelece que a alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese, resguardando, assim, o interesse social, a segurança jurídica e a proteção da confiança no Judiciário.
Para se ter noção da relevância econômica do mercado nacional de locação de imóveis comerciais, em 2018, através de pesquisa realizada pelos SECOVI´s de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Pernambuco, concluiu-se que a receita mensal gerada é de aproximadamente R$ 17.500.000.000,00 (dezessete bilhões e quinhentos milhões de reais).
Ademais disso, a larga maioria dos casos envolvendo a locação de imóveis urbanos que chegam ao Judiciário, são relacionados à imóveis comerciais. Tanto é assim que todos os precedentes que originaram o Tema 295/STF, o Tema 708/STJ e a Súmula 549/STJ tiveram origem na locação de imóveis comerciais.
Insta ressaltar que o Ministério Público Federal, através da Procuradoria-Geral da República, manifestou-se recentemente sobre a questão controvertida, lançando entendimento de que a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação comercial é compatível com a Constituição.⁴
Tudo nos faz crer que existe uma corrente no STF – favorável a tese da impenhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação de imóvel comercial – que se mostra ávida a alterar, sem qualquer justificativa plausível ou fundamentação adequada, a jurisprudência consolidada, há muito, pelos Tribunais Superiores e que sempre manteve a higidez da penhora do bem de família do fiador em contrato de locação de imóvel urbano, independentemente de sua natureza. Todo este esforço com base na precária aplicação de um inconsistent distinguishing.
Por outro lado, parcela considerável de Ministros são adeptos à manutenção do Tema 295/STF, sem qualquer distinção sobre a natureza jurídica da locação, respeitando, com a melhor técnica, a mens legis da legislação inquilinária.
Seja mantendo a higidez do Tema 295/STF para qualquer modalidade de locação, seja restringindo sua aplicação apenas para os casos de locação de imóvel residencial, os jurisdicionados e a sociedade como um todo reclamam e necessitam que sejam observadas, em sua plenitude, a segurança jurídica, a isonomia e a proteção da confiança no Judiciário, insígnias do Estado Democrático de Direito, favorecendo, ainda, a modulação dos efeitos de eventual decisão restritiva da tese, evitando-se, assim, um “calote” nos créditos sub judice dos locadores de imóveis comerciais.
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¹ PEIXOTO, Ravi. O sistema de precedentes desenvolvido pelo CPC/2015: Uma análise sobre a adaptabilidade da distinção (distinguishing) e da distinção inconsistente (inconsistent distinguishing). Revista de Processo, São Paulo: RT, 2015, v. 248, p. 348.
² MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 36. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2020. p. 36.
³ MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 36. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2020. p. 36.