STF mantém penhora do bem de família de fiador de contrato de locação de imóvel comercial
Chegou ao fim a tempestuosa tentativa de mutação da jurisprudência sobre a possibilidade de penhora do bem de família do fiador de contrato de locação de imóvel comercial.
A matéria já havia sido consolidada pelos Tribunais superiores no sentido da legalidade e constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador de contrato de locação de imóvel urbano. No Superior Tribunal de Justiça – STJ, já contávamos com o Tema 708/STJ, publicado em 2014 e a Súmula 509/STJ, publicada em 2015. Já no Supremo Tribunal Federal – STF, desde 2010, prevalecia a tese do Tema 295/STF. Vejamos os enunciados dos precedentes obrigatórios:
“Tema 708/STJ – É legítima a penhora de apontado bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, ante o que dispõe o art. 3º, inciso VII, da Lei n. 8.009/1990”.
“Súmula 549/STJ – É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação”.
“Tema 295/STF – É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no art. 3°, VII, da Lei 8.009/1990 com o direito à moradia consagrado no art. 6° da Constituição Federal, com redação da EC 26/2000”.
Os citados precedentes obrigatórios, no entanto, não faziam distinção sobre o tipo de contrato de locação de imóvel – fosse residencial, fosse comercial – para que houvesse a permissão da penhora do bem de família do fiador. Permitiam a constrição do bem de forma abrangente, para todos os tipos de contratos de locação de imóvel. Aliás, não seria necessário realizar qualquer distinção sobre as modalidades da locação para que o bem de família do fiador fosse chamado a satisfazer o crédito do locador, visto que, nem a lei, nem a doutrina, distinguiam.
Vale ressaltar que a jurisprudência consolidada em 2010 pelo STF e 2014 pelo STJ, foi construída em um cenário em que todos os casos concretos levados à julgamento por esses Tribunais superiores possuíam como circunstâncias fáticas a locação de imóvel comercial. Neste sentido, realizando o necessário diálogo com os precedentes obrigatórios, a única conclusão que se poderia adotar seria a possibilidade de penhora do bem de família do fiador em todos os tipos de contrato de locação de imóveis, fossem comerciais, fossem residencias.
No entanto, não foi este o entendimento lançado no RE 605.709, pela 1ª Turma do STF, em junho de 2018.
Naquela oportunidade, a Min. Rosa Weber acatou argumentos do fiador (recorrente) de que o caso concreto em julgamento (RE 605.709) possuía como circunstância fática a locação de imóvel comercial, enquanto os precedentes obrigatórios tratavam da locação de imóvel residencial.
Tomando por verdade a citada argumentação do recorrente, a Min. Rosa Weber aplicou o método de distinguishing dando origem a uma tentativa de mutação da jurisprudência sobre a matéria. Segue trecho de seu voto:
“… 3. Premissas fáticas distintivas impedem a submissão do caso concreto, que envolve contrato de locação comercial, às mesmas balizas que orientaram a decisão proferida, por esta Suprema Corte, ao exame do tema nº 295 da repercussão geral, restrita aquela à análise da constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador em contrato de locação residencial…” (STF – RE 605709, Rel.: Min. DIAS TOFFOLI, Relª. p/ Acórdão: Minª. ROSA WEBER, Primeira Turma, j. em 12.06.2018, ACÓRDÃO ELE-TRÔNICO DJe-032 DIVULG 15.02.2019 PUBLIC 18.02.2019)
Infelizmente faltou diálogo com os precedentes. Apesar de tais argumentos, nem o fiador, nem a Min. Rosa Weber, se desincumbiram de analisar detidamente os casos que deram origem à jurisprudência consolidada. O fato é que, as premissas fáticas de todos os casos concretos que deram origem aos precedentes obrigatórios, lastreavam-se na locação de imóvel comercial.
Além disso, de acordo com o entendimento da Min. Rosa Weber, o bem de família do fiador não poderia ser exigido para satisfazer o crédito de locador de imóvel comercial ou de estimular a livre iniciativa. O bem do fiador, no entanto, em sua visão, poderia sofre a constrição para satisfação do crédito de locador de imóvel residencial. Vejamos a trecho de seu voto:
“1. A dignidade da pessoa humana e a proteção à família exigem que se ponham ao abrigo da constrição e da alienação forçada determinados bens. É o que ocorre com o bem de família do fiador, destinado à sua moradia, cujo sacrifício não pode ser exigido a pretexto de satisfazer o crédito de locador de imóvel comercial ou de estimular a livre iniciativa. Interpretação do art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/1990 não recepcionada pela EC nº 26/2000…” (STF – RE 605709, Rel.: Min. DIAS TOFFOLI, Relª. p/ Acórdão: Minª. ROSA WEBER, Primeira Turma, j. em 12.06.2018, ACÓRDÃO ELE-TRÔNICO DJe-032 DIVULG 15.02.2019 PUBLIC 18.02.2019)
O julgador do caso deixou de perceber que, ao tentar realizar a pretendida distinção, atacaria fatalmente o princípio constitucional da isonomia, tanto material, quanto formal.
Sobre este assunto, em obra de minha autoria, “Locação de Imóvel Comercial e o Bem de Família do Fiador”, é possível verificar que os locadores, sejam de imóveis comerciais, sejam de imóveis residenciais, sempre estarão no mesmo patamar de direito e deveres, portanto devem ser tratados de forma isonômica perante a lei. Segue trecho do livro:
“Neste contexto, é certo que todos os locadores de imóveis urbanos, sejam estes residenciais ou comerciais, se encontram no mesmo patamar de direitos e possuem as mesmas obrigações perante o ordenamento jurídico, mormente diante da lei inquilinária. Daí, surge o preceito fundamental de que tratar os iguais de forma desigual revela verdadeiro ato de discriminação e preconceito, condutas estas, bravamente combatidas pela Constituição Federal.
Não se pode afirmar que o crédito proveniente da locação de imóvel residencial será destinado, única e exclusivamente, à moradia ou sustento da família do locador. Da mesma forma, não é verdade que o crédito advindo da locação de imóvel comercial deverá se destinar, unicamente, à livre iniciativa, à obtenção de lucro ou ao fomento mercantil. Fatos estes que, se fossem fidedignos, poderiam, em tese, gerar uma desigualdade legal entre os locadores de imóveis residenciais e comerciais que permitisse, eventualmente, a aplicação do método do distinguishing, excluindo uma ou outra categoria de locador para possibilitar a satisfação de seus créditos pela penhora do bem de família do fiador, utilizando, para tanto, a sobreposição do direito à moradia sobre o direito ao crédito.
Acontece que por trás de uma locação de imóvel residencial pode, muito bem, encontrar-se um investidor pessoa física, ou, até mesmo, uma empresa imobiliária ou um fundo de investimento imobiliário, que tenham como principal atividade a compra de imóveis residenciais para locação, com as únicas finalidades de aumento patrimonial, rentabilização do capital ou obtenção de lucro pelo exercício de atividades empresariais (estímulo à livre iniciativa).
Por outro lado, a locação de um imóvel comercial pode estar sendo gerida por uma entidade familiar que necessita da renda auferida através da locação para a sua moradia, alimentação e subsistência; para subsidiar um planejamento previdenciário de um membro idoso da família; ou, até mesmo, para possibilitar um tratamento de saúde para algum parente. Observe que o crédito advindo da locação comercial, nestes casos, está subsidiando o direito à saúde, à alimentação, à moradia, à previdência, todos esses com base na proteção à família.
As hipóteses são inúmeras e, a princípio, parece um tanto desarrazoado pretender distinguir o locador (residencial x comercial) para fins de satisfação de seu crédito através da penhora do bem de família do fiador do contrato. Afinal, o ordenamento jurídico deixa bem delineado que os locadores (sejam de imóveis residenciais ou comerciais) sempre estarão no mesmo degrau de direitos e obrigações”.[1]
Da mesma forma, analisando a isonomia formal aplicada ao tema em debate, a citada obra traz os seguintes ensinamentos:
“Para casos idênticos, as decisões do judiciário devem ser idênticas, sob pena de violar a igualdade dos jurisdicionados perante a lei.
Conforme já percebido, o órgão prolator da decisão no RE 605.709 afirmou que a premissa fática que originou o leading case do Tema 295/STF, tratava de fiança dada em contrato de locação residencial. No entanto, a verdade é que a questão fática que originou o RE 612.360, tratava exatamente da fiança dada em contrato de locação comercial, como já demonstrado.
Diante da existência pacífica dos precedentes, tanto do STF (Tema 295) quanto do STJ (Tema 708 e Súmula 549) – que, repita-se: tratam da possibilidade do bem de família do fiador de contrato de locação de imóvel comercial ser penhorado, concluindo pela higidez e constitucionalidade do inc. VII, do art. 3º, da LBF –, não há margem para adotar conclusão distinta sobre o caso concreto (RE 605.709), afastando a penhora do imóvel do garante pelo fato da natureza comercial do contrato de locação. Os precedentes não autorizam esta ousada pretensão”.[2]
O entendimento da 1ª Turma do STF, no RE 605.709, passou a fomentar decisões conflitantes entre os Tribunais estaduais, bem assim, a divergência interna corporis, entre os órgãos colegiados de um mesmo Tribunal.
Neste contexto de tentativa de mutação da jurisprudência, o STJ passou a receber inúmeros recursos revisitando a matéria. Uns dos fiadores, outros dos locadores, posto que os Tribunais estaduais, como dito, passaram a não mais observar um entendimento único da corte suprema, causando, por consequência, prejudicial insegurança jurídica para os jurisdicionados de todo país.
O STJ, no entanto, afastando o entendimento da 1ª Turma do STF, se manteve estável, íntegro e coerente, homenageando a higidez do bem elaborado enunciado da Súmula 509/STJ.
Já no STF, a divergência interna corporis começou entre as duas turmas, chegando a haver desencontro de entendimentos entre Ministros de uma mesma turma.
Em dado momento a maioria dos Ministros que compõem o plenário do STF, em decisões monocráticas, passou a adotar o mesmo entendimento da Min. Rosa Weber. Os Ministros Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Edson Fachin, defendiam que a penhora do bem de família do fiador seria possível apenas para satisfação do crédito do locador de imóvel residencial.
Por outro lado, os Ministros Luiz Fux, Dias Toffolli, Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Nunes Marques, entendiam por manter a higidez do Tema 295/STF, afastando a distinção e conservando a constitucionalidade de penhora do bem de família do fiador tanto na locação de imóvel residencial, quanto comercial.
Pela multiplicidade de recursos que chegaram ao STF e considerando a relevância da matéria, em fevereiro de 2021, foi afetado o RE 1.307.334 como leading case para o julgamento do Tema 1.127, pela sistemática da repercussão geral.
O citado tema foi proposto para oportunizar o Plenário do STF deliberar sobre a penhorabilidade de bem de família de fiador em contrato de locação comercial, trazendo de volta a segurança jurídica, até então debilitada.
O relator do leading case, Min. Alexandre de Moraes, incluiu o recurso na pauta de julgamento da sessão plenária do dia 12/08/2021.
Naquela ocasião, além do voto do relator. Min. Alexandre de Moraes, no sentido de fixar a tese do Tema 1.127/STF com o seguinte enunciado: “é constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial”, foram colhidos os votos dos Ministros Roberto Barroso, Nunes Marques e Dias Toffoli, acompanhando o entendimento do relator.
Em voto divergente, o Ministro Edson Fachin propôs a seguinte tese: “é impenhorável o bem de família do fiador de contrato de locação não residencial”. O voto divergente teve a adesão dos Ministros Rosa Weber, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski.
Vale destacar que, na época da sessão de julgamento, havia uma vacância para o cargo de Ministro no STF, provocada pela aposentadoria do Min. Marco Aurélio. O plenário do STF estava composto por 10 Ministros.
Neste cenário, a votação sobre o tema estava empatada com placar de 4 x 4. Quatro Ministros pela possibilidade da penhora nos casos de locação de imóvel comercial e outros quatro Ministros afastando a penhora.
Como já percebido pelo leitor e demonstrado anteriormente, naquela sessão restava o voto do Min. Gilmar Mendes, que já havia se inclinado pela impenhorabilidade nos casos de locação de imóvel comercial em decisões monocráticas. Com o seu voto, ocorreria o desempate do pleito com o placar de 5 x 4, sendo vencedora a seguinte tese: “é impenhorável o bem de família do fiador de contrato de locação não residencial”. Isto porque, o Min. Luiz Fux, ocupando o cargo de Presidente do STF e por haver a vacância de um cargo de ministro, teria voto de qualidade, ou seja, apenas para caso de empate (art. 13, IX, b), do RISTF).
Desta maneira, antes do início do pronunciamento do voto do Min. Gilmar Mendes, o Presidente, Min. Luiz Fux, suspendeu a sessão de julgamento, para que fosse retomada a votação em outra oportunidade, mantendo o empate naquela ocasião.
Em dezembro de 2021, na mesma semana em que André Mendonça tomou posse do cargo de Ministro do STF, o Presidente fez incluir em pauta a continuação do julgamento do Tema 1.127/STF.
A princípio, a sessão de julgamento aconteceria em 03/02/2022. No entanto, o julgamento do tema precisou ser adiado.
Já no dia 10/02/2022, foi incluído na lista de julgamento virtual pelo plenário, com início em 25/02/2022 e término em 08/03/2022.
No decorrer do julgamento virtual, o Min. Gilmar Mendes lançou seu voto e, abjurando ao que outrora havia sustentado, acompanhou o voto do relator do leading case, Min, Alexandre de Moraes. Em suas razões fez a seguinte consideração:
“A tese é judiciosa (menção ao entendimento da Min. Rosa Weber no RE 605.709), e por dever de lealdade consigno que já a adotei em casos apreciados na Segunda Turma (ex: RE 1.242.616-AgR-segundo, de minha Relatoria, DJe de 1º.9.2020). Agora, por oportunidade do exame da matéria de modo mais detido em sede de Repercussão Geral, e beneficiando-me dos votos proferidos quando da Sessão de 12 de agosto de 2021, peço vênias para dela dissentir.”
Por fim, os Ministros André Mendonça e Luiz Fux também lançaram seus votos acompanhando o relator do leading case, encerrando a votação com placar de 7 x 4, sendo vencedora a seguinte tese do Tema 1.127/STF: é constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial”.
Bem analisando a matéria em discussão, juntamente com a lei, a doutrina e os precedentes obrigatórios, a tese fixada no Tema 1.127/STF nada mais é do que uma redundância do que já havia sido consolidado através do Tema 295/STF, desde os idos de 2010.
É de se reconhecer que, nos últimos 4 anos (2018 a 2022), o judiciário foi sobrecarregado por milhares de recursos que tiveram origem em um entendimento natimorto surgido através da lamentável ausência de diálogo com os precedentes. Além de trazer uma sensação de extrema insegurança jurídica para os jurisdicionados durante este período, o mercado imobiliário voltou a experimentar um desequilíbrio que havia sido enterrado há décadas.
Tudo isso teria sido evitado se houvesse método e cultura jurídica necessárias ao diálogo com os precedentes. Rigorosamente, falta técnica e vontade, como explica o ilustre doutrinador, Marinoni:
“As súmulas simplesmente neutralizam as circunstâncias do caso que levaram à sua edição. As súmulas apenas se preocupam com a adequada delimitação de um enunciado jurídico. Ainda que se possa, em tese, procurar nos julgados que deram origem à súmula algo que os particularize, é incontestável que, no Brasil, não há método nem cultura para tanto”.[3]
Apesar de tudo, pode ser afirmado que a tormenta acabou. O céu voltou a ficar límpido para o mercado imobiliário e os seus protagonistas retomaram a previsibilidade sobre seus direitos e obrigações, tão necessária a um Estado Democrático de Direito.
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[1] ARAÚJO, Abílio Manuel Mota Veloso de. Locação de imóvel comercial e o bem de família do fiador. Curitiba: Juruá, 2021. p. 131.
[2] ARAÚJO, Abílio Manuel Mota Veloso de. Locação de imóvel comercial e o bem de família do fiador. Curitiba: Juruá, 2021. p. 136.
[3] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 217-218.